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Política

Como a ditadura tentava transformar estudantes em seus mini-agentes

Sou um filho temporão da ditadura. Vivi o fim da minha infância e começo de adolescência já nos estertores da “Redentora”. Meus pais passavam longe de ser militantes políticos. Viviam suas vidas e tentavam sustentar a família em um subúrbio do Rio de Janeiro. A ditadura chegou até mim de forma indireta, mas bem insidiosa.

Toda a minha vida estudei em escolas públicas. Não posso questionar a qualidade do ensino, já que este me deu condições de passar no vestibular e estudar em uma universidade também pública. Não lembro de discussões políticas ou doutrinações ideológicas de qualquer índole em sala de aula. Mas lembro, sim, que a secretaria municipal de educação do Rio de Janeiro mantinha naqueles anos finais do Regime Militar alguns programas extracurriculares que hoje, vistos em retrospectiva, tinham um claro objetivo de doutrinação dos estudantes.

No período em que fiz o chamado “ginásio” (hoje chamado de Fundamental), ou seja, entre as então 5a. e 8a. séries, ainda era absolutamente obrigatória a formatura diária em linha antes do início da aula para cantar o Hino Nacional. Eventualmente outros hinos oficiais eram acrescentados, dependendo da época do ano.

O resultado é que até hoje sei de cor os hinos da Independência (“Japonês tem quatro filhos, todos quatro…”, assim cantávamos entredentes), República (“Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós”, que piada), do Exército (“Nós somos da Pátria a guarda, Fiéis soldados, Por ela amados”), Marinha (“Qual cisne branco que em noite de lua”), Bandeira (Salve lindo pendão da esperança!”). E o que mais gostávamos: o Hino do Rio de Janeiro (“Cidade Maravilhosa, Cheia de Encantos Mil”), porque este na verdade era uma marchinha de carnaval.

Mas a formatura diária em linha não era nada. Havia outros programas de “integração” mais sinistros e ardilosos. Acho que o principal deles era um chamado PES, sigla para “Patrulha Escolar de Segurança”. É isso mesmo que parece. Alguns alunos recebiam a “distinção”, geralmente dada em função do melhor aproveitamento escolar, de ter uma espécie de poder de polícia sobre outros alunos.

Devo admitir, para minha vergonha pessoal, que eu mesmo fui um PES por uns 6 meses. O que isto significa? Recebíamos uma braçadeira azul escura, com o escudo da escola e a sigla PES escrita bem grande em letras brancas. Tínhamos treinamento por parte de um policial militar, não lembro a patente. Visitávamos quartéis da PM e do Exército e participávamos com distinção do desfile de 7 de Setembro

Investidos do “poder” de patrulheiros fazíamos desde coisas prosaicas, como ajudar as crianças menores a atravessar a rua, como ações mais pesadas, tipo intervir em brigas e levar o brigões para a secretaria, alcaguetar (não tem outro nome) alunos com “mau comportamento”. E por aí vai. E a cereja no bolo: na condição de PES éramos mais ou menos intocáveis. Ou seja, se fôssemos agredidos por outros alunos, estes poderiam ser expulsos da escola.

Ou seja, éramos todos, sem perceber, micro-agentes da ditadura no que ela tem de pior, a capacidade de transformar cidadãos comuns, crianças de 12, 13 anos neste caso, em seus peões. Éramos um pequeno experimento da banalização do mal arendtiana, parafusos de uma engrenagem que foi permeando pouco a pouco a sociedade brasileira ao longo de 21 anos de poder.

Pelo que pude pesquisar na internet, na sua origem a PES havia sido criada para ser um programa de “educação para o trânsito”, com os patrulheiros mirins ajudando a orientar seus colegas sobre como ser comportar com relação aos veículos. O fato é que na minha época, pelo menos, já tinha um corte claramente mais militarizado que caia como uma luva na ideia distorcida de ordem e progresso imposta pela ditadura militar.

Obviamente a engrenagem era falha. Nem eu nem nenhum dos meus colegas que conheci arregimentados para ser “PES” crescemos fascistoides ou “viúvas” da ditadura. Pelo contrário, hoje temos plena consciência do abuso moral que havia por trás da iniciativa. Também pelo menos na minha turma nunca chegamos a usar as prerrogativas do “posto” para abusar sobre outros alunos, mas inegavelmente a possibilidade existia.

Lembro também de outras fissuras na doutrinação, como no ano em que a escola de samba da região foi campeã e a diretora da escola onde eu estudava incluiu o samba-enredo vencedor entre as músicas da formatura em linha, entre o Hino Nacional e o da Independência.

A resistência podia ser sutil e prosaica, mas ajudava a nos lembrar que aquele patriotismo encenado era tão falso na sua essência quanto as promessas da “Redentora”.

Sobre Renato Guimaraes

Sou brasileiro, carioca, flamenguista e jornalista. Gosto de praia, ler (de tudo), cinema, música, boa comida (especialmente japonesa, tailandesa, peruana e mineira), cachaça (especialmente as mineiras), um bom papo com os amigos e com gente interessante. Tenho interesse em assuntos ligados à sustentabilidade, redes, internet, movimentos sociais, comunicação e relações internacionais. Sou Diretor de Engajamento do Greenpeace Brasil. Twitter: @renatoguimaraes

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